domingo, 11 de janeiro de 2009

Princípio da fungibilidade

É o princípio pelo qual se permite a troca de um recurso por outro recurso, ou seja, um recurso pode ser recebido por outro, sob certas condições.
Este princípio era previsto expressamente no artigo 810 do Código de Processo Civil de 1939, que assim dispunha[1]: “Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento”.
Na abalizada voz de Flávio Cheim Jorge:[2]:
“O art. 810 do CPC/1939 justificava-se, basicamente, pela complexidade da sistemática recursal brasileira então vigente, no qual havia, na realidade, uma promiscuidade em matéria de recursos. Eram freqüentes, no diploma passado, as situações de perplexidade das partes quando lhes cabia determinar o recurso cabível optar entre a apelação e o agravo de petição”.
Entrementes, o CPC atual não contém qualquer dispositivo que consagre em seu texto a fungibilidade recursal, como fazia o Código de 1939, assim, brotando nos primeiros anos da vigência do código, na doutrina e na jurisprudência, discussão a respeito da subsistência deste princípio.
A extraordinária simplificação da sistemática recursal vigente fez pensar que não haveria hipótese de dúvida. No entanto, as dúvidas e hesitações surgiram sobre qual o recurso cabível em face de um determinado provimento estatal emitido[3].
O próprio legislador concorre para os equívocos em que incidem os operadores do direito, porquanto em diversas disposições fala em sentença, quando o ato é na verdade decisão interlocutória e, portanto, sujeita ao agravo, não à apelação.
Exemplo do que acaba de se dizer pode ser encontrado no artigo 395, do CPC, que fala em sentença, quando se está diante de uma decisão interlocutória, bem como no artigo 718, pois, embora a Lei 11.832/06 tenha alterado este artigo, se esqueceu de modificar o artigo 719, que, ainda, faz referência à sentença, portanto, permanecendo a dúvida.
Araken de Assis[4] cita outros exemplos:
“De outro lado, controvérsias doutrinárias turvam aidentificação do recurso cabível contra os seguintes provimentos: (a) o indeferimento liminar da petição inicial da reconvenção (art. 315), abreviando o trâmite até a sentença conjunta com a pretensão inicial (art. 318), e do pedido de declaração incidente (art.325); (b) o ato que resolve o pedido de remoção do inventariante (art. 997); (c) o ato que julga o pedido de exibição de documento ou de coisa no curso do processo (art.361); (d) a decisão que exclui do processo o litisconsorte; (e) a decisão que defere ou indefere ou indefere o pedido de gratuidade, no âmbito dos autos originais, ante os termos do artigo 17 da Lei 1.060, de 05.02.1950”.
Tais exemplos, além de outros, geram o chamado estado de perplexidade no operador de direito.

6.4.7.1. Critérios para aplicação do Princípio

Nas situações acima apresentadas, em que não se pode afirmar com certeza qual o recurso cabível, gerando uma situação de dúvida objetiva, se aplicará o princípio da fungibilidade, admitindo se um recurso por outro, desde que não tenha existido erro grosseiro[5] em sua interposição.
Entende-se por erro grosseiro a escolha errônea de uma das modalidades de recurso quando a lei é clara quanto ao cabimento do recurso ou ainda quando conceituava inequivocamente uma determinada decisão; quando a doutrina era unânime quanto ao recurso cabível para a espécie; quando não existia qualquer dissenso na jurisprudência a respeito.
Luiz Guilherme Marinoni[6], a tal respeito, aduz:
“A dúvida deve ser objetiva, e não subjetiva. Deseja-se dizer, com isto, que a dúvida não pode ter origem na insegurança pessoal do profissional que deve interpor o recurso, ou mesmo sua falta de preparo intelectual, mas sim no próprio sistema recursal”.
“Como já dito, o princípio da fungibilidade não se presta a legitimar a atividade do advogado mal formado, incapaz de atuar com os mecanismos processuais adequados. Serve para tornar o sistema operacional, mediante a admissão do recurso inadequado, desde que a falta seja fundada em dúvida objetiva e não tenha origem e erro grosseiro”.
Assim, para a aplicação do princípio da fungibilidade é necessário exista divergência ou na doutrina ou na jurisprudência, ou ainda que o próprio texto legal possa levar o recorrente a interpor o recurso tido como errado ao invés do correto. Essa espécie de dúvida tem que ser atual, pois se a divergência estiver superada, não há que se falar na possibilidade da fungibilidade recursal.
Em segundo lugar, há o entendimento majoritário, do qual não comungamos, de que o recurso impróprio deve ser interposto no prazo do recurso tido como adequado, sempre que este for menor.
O argumento mais contundente dessa corrente refere-se ao prazo preclusivo fixado pela lei para a interposição do recurso. Assim, extinto o prazo para o recurso correto, a decisão transita em julgado, não se tolerando que, por engano da parte, permanecesse suscetível de reexame.
Desse modo, por exemplo, interpondo-se apelação em vez de agravo, posteriormente ao decêndio do agravo, já não seria possível reabrir a instância trancada pela irretratabilidade da decisão.
Entrementes, a exigência representa flagrante excesso, tal entendimento, em última análise, significa negar a existência ao princípio.
Luiz Guilherme Marinoni[7] admoesta-nos, e com toda razão, que:
“Esse último requisito, conforme bem observa a doutrina, parece mal colocado. Ora, se é razoável que, em face do caso concreto, o interessado utilize o recurso errado imaginando ser o correto, exigir a adequação do prazo (para o recurso correto) não tem sentido algum”.
O último requisito, citado por parte da doutrina, é o da má-fé, que, hodiernamente, vem, majoritariamente, sendo considerado irrelevante, pois, por ser um fenômeno inteiramente subjetivo e cuja identificação torna-se, muitas vezes impossível.
O professor Araken de Assis[8], com autoridade, explicita que “a parte pode interpor o recurso próprio e, nada obstante, recorrer de má-fé – praticando o ato com intuito protelatório (artigo 17, VII). A sanção para tais recursos se encontra no artigo 18”.
Conclui-se, assim, que o princípio aqui retratado incide desde que haja dúvida objetiva sobre o recurso cabível, e não tenha existido erro grosseiro na interposição.
[1] Também foi consagrado expressamente em outra disposição, mais precisamente no artigo 1.485, parágrafo único, do CPC de Minas Gerais (Lei 830-MG, de 07.09.1922).
[2] JORGE, Flávio Cheim, ob. Cit., p. 208.
[3] Hoje, apesar da ausência de previsão legal do princípio da fungibilidade, não há mais dúvidas quanto à subsistência do princípio em nosso sistema recursal.
[4] ASSIS, Araken de, Manual dos Recursos, p. 88.
[5] Sobre o tema se posicionou o STF: “Considera-se erro inescusável, não se aplicando o princípio da fungibilidade dos recursos, a interposição de AgRg contra acórdão proferido por uma das Turmas do STF. Com esse entendimento, a Turma, por unanimidade, não conheceu do agravo regimental interposto contra acórdão por ela proferida, deixando de convertê-lo em embargos de declaração”. (STF, 1.ª T., RE (AgRg) 208916-SP, relator Ministro Moreira Alves). O STJ já decidiu: “Configura-se o erro grosseiro, impedido a aplicação do princípio da fungibilidade, pela interposição de recurso impertinente em lugar daquele expressamente previsto em norma jurídica própria (RTJ132/1374). É erro grosseiro ‘a interposição de Ag quando cabível o AgRg contra decisão do relator que indeferiu MS’”. (STJ, 1.ª T., RMS 5050-5-DF, relator Ministro Cesar Asfor Rocha).
[6] MARINONI, Luiz Guilherme, Processo de Conhecimento. Editora RT. 6ª edição. 2007, p. 504\505.
[7] MARINONI, Luiz Guilherme, Processo de Conhecimento. Editora RT. 6ª edição. 2007, p. 505.
[8] ASSIS, Araken de, Manual dos Recursos, p. 93.

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